Radar da Participação #7 - Escola sem Partido e professores sem expressão: os debates em torno do PL 274/2017 em tramitação na Câmara Municipal de Belo Horizonte

Por Marcos Paulo Dias Leite Resende. "A Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou no dia 14 de outubro deste ano, em primeiro turno, o Projeto de Lei 274/2017, que institui pela primeira vez em uma capital brasileira o programa defendido nacionalmente pelo movimento Escola sem Partido. A análise sobre o debate em torno dos projetos de lei que assumem as propostas do Escola sem Partido e sobre as estratégias desse movimento tornou- se um e sforço necessário para a compreensão sobre o atual cenário político brasileiro e sobre os avanços da ideologia da nova direita sobre as políticas públicas nacionais, especialmente sobre a Educação".

A Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou no dia 14 de outubro deste ano, em primeiro turno, o Projeto de Lei 274/2017, que institui pela primeira vez em uma capital brasileira o programa defendido nacionalmente pelo movimento Escola sem Partido. O projeto imerso em grande polêmica dispõe sobre a limitação da atuação dos professores em sala de aula, buscando coibir aquilo que seus defensores intitulam como “doutrinação ideológica”.    Dado que o PL 274/2017 segue tramitando na casa legislativa municipal, vale a pena descrever os principais argumentos envoltos no debate relativo às suas proposições.

Os objetivos do Movimento Escola sem Partido

O Movimento Escola Sem Partido (ESP), instituído em 2004 sob liderança do procurador do estado de São Paulo Miguel Nagib, tem como objetivo coibir a prática daquilo que denomina como “doutrinação ideológica”, um conceito ainda bastante controverso, mas que sinaliza, segundo os adeptos do movimento, a existência de um esforço orquestrado para se difundir, especialmente nas escolas, determinadas ideologias religiosas, políticas e partidárias (principalmente de esquerda).  

A atuação do ESP desde o início se pautou pela tentativa de influenciar a opinião pública e pela articulação de setores estratégicos da sociedade a fim de garantir a hegemonia de valores conservadores no sistema educacional, promovendo uma verdadeira batalha contra a promoção de opiniões progressistas dentro das salas de aula de todos os níveis de ensino.

Inicialmente, as estratégias do ESP se concentraram na denúncia de situações nas quais os professores emitiam opiniões nas salas de aula ou na tentativa de censura aos conteúdos pedagógicos contrários à moral conservadora. Mas, a partir de 2014, aproveitando a iniciativa então Deputado Estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro (PSC/RJ), o movimento ampliou seu leque de atuação ao se tornar uma referência na formulação de leis que colocassem em prática instrumentos formalizados de controle sobre a prática pedagógica.

A partir de então, o ESP passou a empregar três principais frentes de ação. A primeira e mais importante permanece sendo a divulgação de suas ideias em diferentes mídias, especialmente as digitais, para a formação de uma opinião pública favorável às suas propostas. Assim, o movimento objetiva conquistar apoio principalmente de pais e alunos, buscando ampliar sua capacidade de impacto direto sobre as escolas. A segunda frente de atuação consiste em estabelecer vínculos com grupos políticos e partidários conservadores a fim de implementar leis que formalizem e coloquem em prática seu programa. Por fim, mas não menos importante, o ESP busca respaldo de representantes do Poder Judiciário para garantir uma justificação legal para suas ideias, tendo em vista que, até o momento, suas proposições têm tido a constitucionalidade questionada.

A ideia central dos projetos de lei formulados pelo Escola Sem Partido é garantir a fixação de um cartaz nas salas de aula enumerando seis deveres do professor.

Figura 1 – Cartaz sugerido pelo ESP


O cartaz a ser afixado nas salas de aula objetiva exercer duas funções importantes para o sucesso da proposta do movimento. Em primeiro lugar, cumpre a função de promover nos alunos o ímpeto da vigilância e do monitoramento contínuo sobre a prática dos professores. Assim, atribuem aos estudantes a posição de fiscais da execução da lei e de controladores ideológicos do corpo docente. A outra função é a de incutir nos professores e profissionais da Educação a necessidade de autovigilância, pois, ao se sentirem ameaçados com as possíveis denúncias e sanções, professores/as e profissionais da educação deixarão de expressar opiniões que não estiverem em harmonia com os valores morais das famílias das (os) estudantes.

O procurador Miguel Nagib costuma defender a tese de que ao emitirem suas opiniões ou lecionarem conteúdos que contrariam valores morais dos estudantes e de suas famílias, os professores estariam gerando danos morais em suas “audiências cativas”, estando, portanto, sujeitos às penalidades já previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Essa estratégia amplia, assim, a capacidade de coação do movimento sobre a prática pedagógica por meio do potencial recurso à judicialização.  

As propostas do PL 274/2017

O projeto de lei que tramita na Câmara Municipal de Belo Horizonte baseia-se no modelo sugerido pelo ESP em sua página na Internet, apesar de conter, como será apresentado adiante, algumas alterações importantes. 

Ao analisar as propostas legislativas que preveem a institucionalização do programa do ESP, é possível perceber a ausência no corpo da lei de definições bem delimitadas sobre o conceito de “doutrinação ideológica”. Sobre essa questão, é preciso salientar que o sucesso do programa do Escola Sem Partido depende de sua capacidade de construir um discurso que possibilite articular as leis com a formação de uma opinião pública que identifique a “doutrinação” como sendo apenas relativa aos valores progressistas, consolidando o conceito, portanto, fora do documento formal e de acordo com entendimentos enviesados.

Essa flexibilidade objetiva abrir espaço para um entendimento da lei consoante com uma visão conservadora bastante difundida na nossa sociedade, uma vez que, se fosse bem delimitado no documento formal, o conceito poderia ser, em tese, aplicado tanto em contextos nos quais as opiniões progressistas são contestadas, quanto em contextos nos quais os alvos são as opiniões conservadoras.  Além disso, a apresentação de conceitos vagos pode permitir que o programa do Escola Sem Partido seja colocado em prática e se torne eficaz sem apresentar formalmente elementos que caracterizem vícios de constitucionalidade relativos à evidente censura que promove no ambiente escolar.

Outros termos importantes apresentados pelo ESP em seus projetos de lei também carregam um esforço de flexibilização da hermenêutica jurídica, o que favorece ainda mais o conflito em torno da proposta. Os conceitos de “liberdade de aprender e ensinar” e de “pluralismo de ideias”, tão caros à tradição democrática, tornam-se alvos de um novo embate discursivo.

Quanto ao primeiro termo, a concepção proposta pelo movimento é a de que a liberdade de cátedra não se confunde com a liberdade de expressão. Para o ESP, a expressão dos professores deve estar sempre limitada e condicionada aos conteúdos formais e tradicionais, prevalecendo a “neutralidade ideológica” no exercício da instrução dos alunos. Para seus opositores, no entanto, o conceito de “liberdade de ensinar” é mais amplo, permitindo, inclusive, a educação voltada para as questões morais e valorativas que incidem sobre a inserção do indivíduo nas relações sociais. Aqui se assume, de partida, a impossibilidade de haver “neutralidade ideológica” em qualquer contexto educacional. Esse debate diz respeito, em última instância, à concepção sobre o papel da escola e sobre o modelo educacional que deve ser desenvolvido no país. De um lado, prevalece o modelo tradicional com predomínio do ensino conteudista e técnico; de outro, prevalece o modelo progressista, que associa aos conteúdos os esforços da educação com perspectiva crítica e de formação cidadã. 

O conceito de “pluralismo de ideias”, por sua vez, traz uma complexidade de análise ainda maior. Para os opositores ao programa do ESP, o pluralismo de ideias se coaduna com a concepção mais ampla de liberdade de expressão. Já para os apoiadores do movimento, o “pluralismo de ideias” é apresentado como um conceito bastante dúbio, com conotações diferenciadas a depender do contexto. O discurso oficial do Movimento Escola sem Partido prevê a garantia de ensino sobre as principais vertentes de pensamento relativo a um   determinado conteúdo quando houver debates, especialmente quando o conteúdo tocar em questões sensíveis do ponto de vista religioso ou moral. Esse é o caso, por exemplo, do ensino do Criacionismo de forma paralela ao ensino sobre a Teoria da Evolução de Darwin. No entanto, quando o assunto passa a ser a discussão sobre gênero, a defesa do pluralismo de ideias é deixada de lado e passa a prevalecer a tese de que a liberdade de expressão do professor é limitada.

É particularmente neste ponto que o PL 274/2017 inova. O projeto, em seu Artigo 2º, propõe claramente a censura aos conteúdos relativos à discussão de gênero nas escolas. De acordo com o projeto de lei, “[o] Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero” (grifo do autor).

Por fim, destaca-se outra questão que afeta o cerne da proposta do ESP e, naturalmente, a condução da política educacional no país: de quem deve ser a primazia na definição dos conteúdos ensinados nas escolas, do Estado ou da família?

            Segundo a proposta do ESP, a primazia da definição do conteúdo é da família, pois a ela deve ser dado o direito de proibir o acesso do filho a determinados conteúdos lecionados nas escolas e que contrariem suas concepções morais e religiosas. Para justificar sua posição, o movimento evoca a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê em seu Artigo 12: “[o]s pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”.

Para os opositores do movimento, o dever de ensinar é compartilhado entre o Estado e a família, sem qualquer hierarquia, assim como prevê o Artigo 205 da Constituição Federal: “[a] educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

            Em que pese a inegável inconstitucionalidade do projeto proposto pelo Escola sem Partido e ainda que sejam claras as deturpações deliberadas dos conceitos com os quais atua, o debate levantado pelo movimento está longe de ser trivial. Ele traz consigo elementos bastante convincentes para parcela importante da população, oferecendo alto potencial de adesão.

            Se for bem-sucedido na estruturação de suas mensagens e se conquistar o apoio de parcelas importantes dos formuladores da agenda pública, o ESP pode lograr sucesso na formulação das políticas públicas educacionais em nosso país. A ampla visibilidade que o movimento está conquistando o coloca como uma das peças centrais na definição das diretrizes pedagógicas em todos os níveis do sistema educacional, o que já pode ser comprovado pelo teor das alterações ocorridas na Base Nacional Comum Curricular durante o governo de Michel Temer e pela forte adesão às suas pautas no atual Ministério da Educação.

            O processo conflituoso de tramitação do PL 274/2017 na Câmara Municipal de Belo Horizonte, com sucessivos embates entre os manifestantes e entre parlamentares – inclusive com uso da força física – reforça a percepção de que já não estamos mais diante de uma excentricidade da “ultra-direita” brasileira.

Enquanto avança em sua tramitação, o PL 274/2017 amplia sua visibilidade e apoio dos movimentos conservadores e desperta a resistência de outros setores articulados. Além dos parlamentares opositores do projeto na casa legislativa, já se manifestaram contrários à proposta representantes do Sindicato dos Trabalhadores da Educação da Rede Pública e Municipal de Belo Horizonte (Sind-REDE), do Fórum Municipal Permanente de Educação de Belo Horizonte, movimentos estudantis, movimentos sociais de esquerda e influenciadores do debate político nas redes sociais. Enquanto os vereadores opositores ao projeto celebraram vitórias pontuais, como as seguidas obstruções à pauta e como a aprovação de pareceres desfavoráveis à proposta na comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo e na comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor, os movimentos sociais e entidades representantes dos professores se articularam em manifestações na Câmara Municipal e em instituições educacionais, conquistando amplo apoio da comunidade escolar.

No entanto, nada foi capaz de impedir que a bancada cristã aprovasse o projeto em primeiro turno. Uma análise sobre o processo indica que a polêmica transcenderá o nível local, principalmente porque a já declarada intenção de veto do Prefeito de Belo Horizonte pode esbarrar numa forte articulação dos vereadores proponentes da lei, levando à derrubada do veto e à possível remessa (por parte do Executivo) para análise sobre a constitucionalidade da matéria nos órgãos superiores do Judiciário, nacionalizando, assim, a temática.

            Apesar de o ESP ter ciência de que pode sofrer uma nova derrota na Suprema Corte, como já sinalizada pela decisão no julgamento sobre a inconstitucionalidade da Lei 7.800/2016, do estado de Alagoas, que tem como base o projeto do Escola sem Partido, o envio da discussão ao STF não é vista como um empecilho à atuação do movimento. Na verdade, tal repercussão faz parte do cálculo do maior expoente do ESP. Em entrevista[1], Miguel Nagib afirmou que a principal estratégia do ESP não é colocar uma lei em prática, mas formatar a opinião pública de acordo com suas ideias. A lei serviria para amparar legalmente as tecnologias de vigilância sobre os professores, porém o mais importante seria, neste caso, que pais e estudantes se convencessem que eles são os principais condutores desses aparatos.  Se os pais e alunos vigiarem as práticas pedagógicas dos mestres e estes, por medo, se autovigiarem, a lei seria desnecessária e a pedagogia do ESP tornar-se-ia uma realidade.

            A análise sobre o debate em torno dos projetos de lei que assumem as propostas do Escola sem Partido e sobre as estratégias desse movimento tornou-se um esforço necessário para a compreensão sobre o atual cenário político brasileiro e sobre os avanços da ideologia da nova direita sobre as políticas públicas nacionais, especialmente sobre a Educação. Por isso, merece receber ampla atenção de uma ampla rede de pesquisadores.

Marcos Paulo Dias Leite Resende é Doutorando em Ciência Política (DCP/UFMG) e pesquisador do Centro de Estudos em Deliberação (CEDE/UFMG).

Para saber mais:

AÇÃO EDUCATIVA (Org.). A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa: 2016.   

FRIGOTTO, G. “Escola sem Partido”: imposição da mordaça aos educadores. E-Mosaicos – Revista Multidiscipplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). V.5, N.9, 2016. 

FRIGOTTO, G. (Org). Escola"sem" Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.

PENNA, F. Programa “Escola sem Partido”: uma ameaça à educação conservadora. In: GABRIEL, C.; MONTEIRO, A.; MARTINS, M. (orgs). Narrativas do Rio de Janeiro nas Salas de Aula de História. Mauad X, Rio de Janeiro, 2016. 




[1] Entrevista concedida ao autor no dia 26 de outubro, no I Seminário Mineiro do Escola sem Partido, em Belo Horizonte.  

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