Carta da Rede Democracia e Participação sugere três propostas prioritárias para a reconstrução e aprimoramento das instituições participativas no próximo governo: um formato viável e inclusivo de orçamento participativo (OP) nacional aventado em diversas ocasiões pelo presidente Lula; uma estratégia de reconstrução dos conselhos nacionais e de reativação e institucionalização de conselhos municipais mais vulneráveis que ajuste o formato institucional à diversidade e desiguais capacidades estatais dos municípios do país; e a reativação das conferências nacionais reforçando seu papel de mobilização da sociedade e avançando na institucionalização de seu caráter como mecanismo de deliberação em políticas públicas. Baixe o PDF da carta.
A Rede Democracia e Participação sugere três propostas prioritárias para a reconstrução e aprimoramento das instituições participativas no próximo governo. Primeiro, propomos um formato viável e inclusivo de orçamento participativo (OP) nacional aventado em diversas ocasiões pelo presidente Lula. Segundo, sugerimos uma estratégia de reconstrução dos conselhos nacionais e de reativação e institucionalização de conselhos municipais mais vulneráveis que ajuste o formato institucional à diversidade e desiguais capacidades estatais dos municípios do país. Por fim, propomos a reativação das conferências nacionais reforçando seu papel de mobilização da sociedade e avançando na institucionalização de seu caráter como mecanismo de deliberação em políticas públicas.
O Brasil, a partir da Constituição de 1988, se destacou no mundo pela participação da sociedade nos rumos políticos e nas políticas públicas do país. A arquitetura de participação construída ao longo de mais de duas décadas permitiu avançar na democratização do Estado graças às possibilidades institucionalizadas de a sociedade ser co-criadora das políticas de garantia de direitos nas áreas de saúde, meio ambiente, assistência social, direitos humanos, educação e tantas outras.
Desde a Constituição, a participação cidadã e da sociedade civil foi enriquecida e diversificada. Nos governos de Lula e Dilma Rousseff a participação se enraizou por seu compromisso com a ampliação e a institucionalização de formas inovadoras de participação.
As instituições participativas permaneceram seis anos sob ataque e hoje precisam ser reconstruídas e aprimoradas. Imediatamente após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, alguns conselhos tiveram suas funções destituídas e composições alteradas, enquanto o número de conferências nacionais caiu pela metade.
O governo Bolsonaro acentuou a investida. No primeiro dia de governo, suprimiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e três meses depois publicou o Decreto N. 9.759, extinguindo todos os órgãos colegiados da administração pública federal. Os conselhos que resistiram ao ato de extinção foram alvo de medidas de enfraquecimento: redução de representação da sociedade civil, restrição do número de reuniões e alteração de atribuições. Não foram realizadas conferências.
Os efeitos do desmonte foram especialmente graves nas áreas de meio ambiente e direitos humanos. O resultado é conhecido: paralisação de grande parte das instituições participativas, comprometendo a qualidade das políticas públicas e impondo um grande retrocesso a nosso processo de democratização. Hoje é preciso reconstruir as instituições participativas e aprimorá-las, superando algumas limitações conhecidas.
Na campanha eleitoral de 2022, em que o voto da cidadania e a mobilização da sociedade civil conseguiram derrotar as forças desse retrocesso, Lula, então candidato e hoje presidente eleito, convocou numerosas vezes a sociedade a governar com ele, retomando as Conferências e Conselhos, que contribuíram decisivamente para a conquista e garantia de direitos. Convocou ainda a sociedade para participar de um Orçamento Participativo Nacional, antídoto para o “orçamento secreto” que entregou parte substancial dos recursos do país a interesses escusos.
Esta Carta apresenta propostas que avançam as possibilidades da participação e contornam limitações conhecidas. As propostas se baseiam no conhecimento acumulado em cerca de 30 anos de pesquisa por pesquisadoras/es articuladas na Rede Democracia e Participação, formada por de 50 grupos sediados em todas as regiões do Brasil e no exterior, e formalizada em 2019. A Rede agrega acadêmicos e ativistas com múltiplas conexões com universidades, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, partidos políticos e gestores públicos.
Por um OP Nacional que incentive a criação de OPs nos municípios
O chamado à construção de um orçamento participativo nacional, em contraposição ao “orçamento secreto”, constitui uma oportunidade para incentivar a criação de milhares de orçamentos participativos nos municípios, organizados pelos seus governos locais. Isso é mais simples e tem um potencial democratizador maior do que um OP organizado de forma centralizada pelo Governo Federal.
A maior parte dos recursos das emendas do relator (o orçamento secreto) e mesmo das emendas parlamentares individuais ou de bancada se transforma em transferências da União para execução pelos governos municipais, auxiliando na continuidade de serviços ou na realização de obras. No melhor dos casos, as emendas acabaram se tornando um caminho para suprir uma demanda dos governos locais por recursos de investimento, mas ocorre com pouca ou nenhuma transparência, fiscalização, participação da população ou sequer critérios técnicos.
Logo, faz todo o sentido que esses valores do Orçamento da União sejam fiscalizados e discutidos pela população do lugar onde ele será utilizado. Ao Governo Federal cabe criar uma regulação com incentivos ou condicionantes para os municípios receberem tais recursos; por exemplo, a condição de realizar uma ampla discussão e deliberação com a população, no formato do que conhecemos como Orçamento Participativo. Temos as experiências dos conselhos de saúde e assistência social que mostram que uma legislação federal com incentivos adequados pode expandir instituições participativas para todas as regiões do país.
O ganho de escala nacional do OP, enraizando-se nos mais de 5 mil municípios do país, apresenta um potencial transformador e de melhora dos indicadores sociais, funcionando ao mesmo tempo como estratégia para promoção de valores democráticos na base da sociedade. Assim, defendemos que pensar um OP nacional não deveria ser uma discussão feita apenas no nível federal, mas se articular aos municípios onde serão utilizadas as transferências oriundas da União.
Por Conselhos de Políticas Públicas fortalecidos, diversos e abertos
Os Conselhos Gestores democratizaram e tornaram mais transparentes os processos decisórios ao incluir organizações da sociedade civil nas deliberações das políticas públicas nos três níveis da federação. No âmbito municipal, e nas áreas em que são mais institucionalizados (como assistência social e saúde), encontram-se presentes em quase a totalidade dos municípios brasileiros. A presença, todavia, varia consideravelmente entre áreas de políticas e igualmente diverso é seu nível de atividade nos planos nacional, estadual e municipal.
Em relação aos conselhos nacionais, sugerimos não apenas a revogação das diversas medidas administrativas tomadas para enfraquecer os conselhos que não foram extintos, mas sua recriação e institucionalização por meio de leis. Os conselhos precisam ser reativados na plenitude de suas funções na gestão das políticas públicas, garantindo seu caráter deliberativo e mecanismos de monitoramento da implementação de suas deliberações no interior do governo. Instituir legalmente essas funções é uma forma direta de resguardá-las. Propomos também a implementação de mecanismos de prestação de contas dos conselhos nacionais aos conselhos estaduais e municipais e para públicos mais amplos, como uma forma de abrir os conselhos ao conhecimento público e de contribuir à construção da percepção social de sua importância.
No plano municipal, outras medidas são pertinentes para fortalecer o potencial democratizante dos conselhos e sua capacidade de aprimorar as políticas públicas. Como os municípios brasileiros são muito desiguais em termos de porte, recursos financeiros, administrativos, humanos e também em termos da densidade da sociedade civil, sugerimos a adoção de formatos institucionais adaptáveis no que diz respeito às exigências de funcionamento dos conselhos e aos critérios de inclusão, em vez de estimular um formato único em todo o país. Municípios de menor porte poderiam ser beneficiados com a adoção de conselhos por grandes áreas de políticas.
Por Conferências Nacionais fortalecidas com monitoramento de suas decisões
As conferências nacionais de políticas públicas já eram realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso nas áreas da saúde e dos direitos humanos. Os governos Lula e Dilma as expandiram e as transformaram em ricos processos de mobilização social e de levantamento de demandas para dezenas de setores de políticas públicas.
A retomada das conferências precisará lidar com um de seus principais problemas, na visão dos movimentos sociais e mesmo de burocratas do governo federal: sua relativa falta de efetividade, uma vez que a elas se somam outros fluxos de decisão política. Sugerimos avançar na institucionalização das conferências nacionais definindo bem seus objetivos e limites, fortalecendo sua capacidade deliberativa, bem como implementando mecanismos de monitoramento de suas diretrizes no interior do governo. Isto é fundamental para que sua credibilidade e legitimidade sejam reforçadas.
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O novo governo que assume o poder em janeiro enfrentará uma série de desafios econômicos e sociais, e não menosprezamos aqui a seriedade de problemas como o desmatamento da Amazônia, a fome, a violência e a crise financeira da ciência, para mencionar apenas alguns de uma lista longa de desafios prementes. Mas o Brasil passa também por uma crise democrática profunda. Ao longo dos últimos anos, o autoritarismo e a desconfiança nas instituições públicas e nas regras da convivência civilizada ganharam voz no governo e se enraizaram na sociedade. Corre-se o risco de um retrocesso permanente dos processos de democratização consagrados na nossa Constituição de 1988 e ainda incompletos quando a extrema direita chegou à presidência.
Por isso, a Rede Democracia e Participação sustenta que a reativação, reconstrução e aprimoramento de instituições participativas deve constar entre os princípios norteadores do novo governo como forma de fazer frente à crise da democracia no país. Destacamos aqui, principalmente, três eixos de ação que consideramos prioritários: o desenvolvimento de um OP nacional descentralizado nos municípios; a recriação e institucionalização dos conselhos nacionais e a diversificação do formato institucional dos conselhos municipais; e a reativação, institucionalização e implementação de mecanismos de monitoramento das conferências nacionais. A estas formas de participação social podem e devem ser acrescidas outras modalidades de intermediação entre o governo federal e a sociedade civil. Mecanismos de participação têm sido desenvolvidos no mundo inteiro e é possível trabalhar criativamente para ampliar a participação social.
A mobilização que levou à vitória histórica de um amplo campo democrático nestas eleições mostrou o engajamento de grande parte de nossa população na defesa e renovação de nossa democracia. Devemos aproveitar este momento único para fortalecer essas convicções e retomar o caminho da democratização, com a participação como caminho para a promoção da justiça social.